12 de novembro de 2008

A crise que não gosta de dizer seu nome

Anualmente a FAO – Organização das nações Unidas para Agricultura e Alimentação – publica um relatório sobre a situação da fome no planeta. O de 2008, divulgado em meados de outubro, apresenta um quadro desesperador. 923 milhões de pessoas, um em cada 6 habitantes da Terra, vão dormir diariamente com fome. Entre estas, a maioria é de crianças cuja capacidade de desenvolvimento intelectual já está comprometida pela subnutrição. Somente em 2007, 75 milhões de pessoas foram incluídas neste exército de famintos.

Cerca de um mês após esta divulgação, a FAO anuncia outro estudo, com números desconcertantes sobre a previsão da produção de alimentos em 2008-2009. Nele, a FAO aponta, entre outras informações, que a produção mundial de cereais aumentará em torno de 5,3% e alcançará a 2,24 bilhões de toneladas. Além disso, a organização alerta para o aumento do preço dos alimentos, que atingirá principalmente as populações dos países pobres. No primeiro semestre de 2008, os preços dos alimentos aumentaram, em média, 64% em relação aos praticados em 2002. Os cereais apresentaram um aumento de 87%, sendo que o arroz aumentos 46% no período.

Mais desconcertantes ainda são os resultados das transnacionais de alimentos no mesmo período: os lucros da Monsanto, no primeiro trimestre de 2008, dobraram em relação ao mesmo período de 2007, passando de 339 para 700 milhões de euros. A Cargill, no mesmo período, teve seu lucro aumentado em 86%, enquanto que a Mosaic, uma das maiores produtoras mundiais de fertilizantes, obteve resultados 12 vezes maiores nestes três meses.

O mercado resolveu opinar, mesmo desmoralizado pela crise financeira, e achou razões para a alta súbita dos preços, que vinham se mantendo mais ou menos estáveis (descontadas as questões sazonais) nos últimos anos. Os culpados escolhidos foram os chineses e os hindus. A lengalenga pseudocientífica, recheada de lugares comuns, alegou que o crescimento do PIB nestes países tinha aumentado a demanda. Além disso, os chineses, ávidos por proteínas, haviam incluído a carne na sua dieta alimentar diária. Isso teria provocado um aumento na demanda, tanto dos 'food grains', usados na alimentação humana, como nos 'feed grains', utilizados nas rações animais.

Estes sábios só não explicaram o porquê dos preços só terem aumentado nos últimos dois anos, já que o consumo nos países emergentes vem aumentando nos últimos 40 anos. Além disso, nenhuma palavra sobre o fato de que tanto a China como a Índia ainda exportam mais alimentos do que importam.

Evidentemente que estas questões apontadas não foram inventadas. Mas para entender a repentina alta dos preços, depois de décadas de razoável estabilidade, é necessário buscar razões mais estruturais, O fato é que, com o neoliberalismo, a regulação do fluxo dos alimentos foi – assim como em outros setores da economia – entregue ao mercado. O controle da produção de alimentos, baseado no sistema de estoques administrados pelas nações, foi substituído pela disponibilidade dos estoques no mercado, "regulado pelo livre comércio".

Além desta razão estrutural, poderíamos citar outras conjunturais, como a redução dos estoques por conta da crise dos 'subprimes'; ou então o fato de que, a partir da Revolução Verde (1960-1970), a agricultura depende fortemente de fertilizantes e agroquímicos, produzidos a partir do petróleo e, por isso, dependentes da especulação em torno de seu preço.

A pressão pela produção de etanol, seja o fabricado a partir do milho nos Estados Unidos, seja o produzido a partir de outros grãos, pela União Européia, já está afetando o preço dos alimentos. Caso esta política se consolide, esta passará a ser mais uma causa estrutural para a crise de oferta e de alta dos preços dos alimentos.

A aplicação da desregulamentação neoliberal trouxe vários problemas que agravaram a fome no mundo: (1) a comida vai para quem paga mais, não para quem tem fome; (2) a lógica da lucratividade extrema determina o que vai ser plantado e agride o meio ambiente e a biodiversidade; (3) a busca pela "eficiência" ultrapassa os limites da biossegurança (transgênicos). Ou seja, a lógica neoliberal não está assentada nem na segurança, muito menos na soberania alimentar.

A alta do preço dos alimentos básicos já tem provocado várias revoltas por todo o planeta: no México, em janeiro deste ano, mais de 75 mil pessoas manifestaram-se contra a escalada do preço das tortilhas, alimento nacional feito com milho. Com o acordo da NAFTA, foram suprimidas todas as barreiras de importação. Com isso, o milho excedente dos EUA entrou no país a preços baixos, quebrando os produtores nacionais, e tornando o México dependente do milho americano. Com o subsídio para a produção do etanol a partir do milho, todo o excedente americano está sendo carreado para esta produção, o que fez aumentar o preço do milho no México.

No Haiti, em abril, 10 dias de revolta popular provocaram a morte de pelo menos 5 pessoas e ferimentos em mais de 200. A repressão foi coordenada pela MINUSTAH, com destacada participação brasileira. Com grande parte da população à beira da inanição, a alternativa de povo haitiano tem sido a dos biscoitos de barro. Preocupadas com a situação, as autoridades brasileiras enviaram algumas toneladas de alimentos, em uma espécie de "bolsa cesta básica". Além desses 2 países, houve revoltas na Indonésia, no Iêmen, Filipinas, Camboja, Marrocos, Senegal, Uzbequistão, Guiné, Mauritânia, Egito, Camarões, Bangladesh, Burkina-Faso, Costa do Marfim, Peru e Bolívia.

No Brasil, as áreas de produção de feijão tornaram-se áreas do milho – para exportação para os EUA (etanol) – e soja, que substitui o milho na ração animal. Mesmo não sendo auto-suficientes, estamos canalizando a produção de trigo para a exportação. Segundo o IBGE, entre 1990-1996, nos municípios onde houve um aumento de 500 ou mais hectares de áreas de cana, esse plantio substituiu o feijão, o arroz e o gado bovino. A pecuária do Centro- Oeste está sendo desalojada pela soja, transferindo-se para a Amazônia. O Pará já possui o terceiro rebanho do país. Essa pressão tem empurrado ainda mais a fronteira agro-pecuária para dentro da floresta, aumentando o desmatamento.

Os pequenos e médio agricultores que foram engabelados pela lábia da Monsanto, que, à princípio, quase que doou as sementes transgênicas da soja, agora estão lidando com a alta de cerca de 40% no preço dessas sementes, o que, certamente, vai inviabilizar a permanência de muitos deles no campo. Além dos perigos que pode trazer para a saúde da população, para quebrar a autonomia e soberania alimentar das nações, e ter efeitos nocivos sobre a biodiversidade, as sementes transgênicas também são um vetor de concentração de terras no campo.

A "auto-regulação" do mercado está desmoralizada e encontra-se enterrada sob toneladas de papéis podres. É o momento para que os países retomem o direito de definir suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos. Estas estratégias devem incluir a preocupação com o ambiente e com a biodiversidade. A segurança alimentar também deve ser objetos de preocupação, principalmente em relação ao desenvolvimento de espécies transgênicas e ao uso combinado de agroquímicos. E, finalmente, é preciso resgatar – já que alguns apressados tinham decretado a sua morte – a bandeira da reforma agrária ecológica, que é o único instrumento de garantia de produção de alimentos e de solução para a impossibilidade das megalópoles. Enquanto isso, somos todos e todas, do campo ou da cidade, sem-terra!