12 de janeiro de 2011

Qual é mesmo o socialismo que queremos?

Publico hoje no blog um texto que escrevi exatamente há um ano atrás. Ele foi escrito com um travo na boca, por conta das tragédias ambientais que tinham acabado de vitimar dezenas de pessoas no Rio, em Niterói, na Baixada e na Costa Verde.

Hoje, com mais de 30 mortos confirmados, além de dezenas de pessoas ainda soterradas, na Região Serrana do Rio, o travo voltou à boca, e uma sensação de dejá vu me incomoda muito.

Esse texto é uma pequena homenagem aos mortos de 2010, aos de 2011, e aos dos anos futuros, vítimas de um sistema que os trata como mera estatística. Copenhague virou Cancun, Rio virou Petrópolis, Niterói virou Teresópolis. Onde estiver escrito Baixada, leia-se Nova Friburgo. Mas a tragédia é a mesma.

Qual é mesmo o socialismo que queremos?
Paulo Piramba
Janeiro de 2010

Fazer um balanço de Copenhague, contando os mortos das chuvas da última semana, não é definitivamente um bom começo de ano. Mas talvez seja isso mesmo que esteja nos faltando, a nós que vivemos de tecer sonhos: sonho com um novo país e com uma nova sociedade que respeite homens, mulheres e natureza.Também, aos poucos de nós que, de um tempo para cá, vivemos de construir cenários sombrios para o futuro da humanidade. Nós, que contrariamos e desafiamos a banda dos contentes, os tecelões dos sonhos de uma sociedade mais justa, inexoravelmente colocada no nosso futuro, mas que teima em escorrer entre os nossos dedos, todas as vezes que dele nos aproximamos. A todos nós, talvez falte exatamente essa dimensão banhada em água, sangue e lama. As vítimas do clima tem nome, rosto e histórias interrompidas.

Elas estão na Costa Verde, no pedaço da ilha que correu para o mar, soterrando veranistas e famílias inteiras de antigos pescadores, hoje caseiros e funcionários de quem ignorou o clima e a geografia, como se a beleza pudesse vencer a tragédia. Mas também estão no Morro da Carioca, tragédia previsível ao olhar leigo, que só esperava um índice pluviométrico “acima da média histórica” para acontecer. Morro que traz no nome uma triste ironia, evocando a capital que também segrega grande parte de seus moradores em encostas perigosas e instáveis. Morros do Rio que também pagaram seu preço em vidas: Fazenda da Bica em Quintino, São João Batista na Praça Seca, Sapê no irajá, e em Vaz Lobo.

Os nomes dos lugares, às vezes carregam ironia, outras vezes trazem antigos ensinamentos que teimamos em esquecer. Jardim Pantanal, em São Paulo: onde as águas não descem. Itaorna, em Angra dos Reis: pedra podre, em tupi guarani; onde a ditadura construiu Angra 1 e 2 e Lula pretende começar a construir Angra 3. Baixada Fluminense: planície cercada por serras e maciços, onde nascem vários rios, que descem preguiçosamente pela Baixada até desaguarem nas Baías da Guanabara e Sepetiba. O relevo e as chuvas contribuem para as cheias periódicas que invadem as várzeas, hoje ocupadas pelas populações sem teto.

A Baixada Fluminense também tem seus mortos para chorar: Jardim Gramacho, Piabetá, Belford Roxo. 68, no total do estado, até a hora em que escrevo. Mas poderia estar falando nos mortos das chuvas de São Paulo, mesmo que a mídia prefira ficar falando das centenas de quilômetros de engarrafamento. Ou então na nossa nova modalidade de tragédia, as vítimas dos tornados do Sul. Ou os milhares de refugiados ambientais de Bangladesh, a enorme Baixada Fluminense deles. Ou então, dos refugiados ambientais anunciados de Tuvalu, prestes a submergir sua cultura, sua história e suas raízes.

Talvez dessa forma, fulanizando e dando cara e nome aos efeitos das mudanças climáticas, talvez assim finalmente a nossa ficha caia, e nós, que ultimamente andamos empenhados em tarefas desimportantes, como o dilema Marina/Plínio, possamos começar a lidar com as reais contradições daqueles que, supostamente, representamos, e a quem dedicamos o melhor de nossas vidas. Afinal, que me perdoem meus camaradas sindicalistas, representamos a classe, ou aquilo que nós desejamos que a classe trabalhadora fosse?

Porque, se temos a pretensão da representação, talvez valha a pena avaliar sobre que bases o “nosso” socialismo está sendo construído. Falamos na classe, mesmo que hoje seja complicado desenhar a sua cara. Criamos nossa Central, mesmo que a maioria do povo trabalhador esteja dormindo com o inimigo. Valorizamos nossos links com os movimentos sociais, embora, na verdade, nossos contatos sejam apenas com uma fatia muito limitada deles. Desconhecemos as cidades onde moramos; contudo a maioria da população é, mais do que nunca, urbana. Em meio a mais brutal crise, optamos em falar o mesmo para nós mesmos.

Nunca na história da esquerda, fomos tão “metonímicos”. Tomamos os poucos sindicatos onde temos presença, como o conjunto da classe. Tomamos o pedaço do ME onde atuamos, como a juventude. Os escassos parlamentares que temos, como a luta institucional. O real tamanho de nossos pequenos partidos, como O partido. É sobre essa “Itaorna política” de bases pouco sólidas que estamos construindo nosso socialismo. Nunca nos contentamos com tão pouco! Para barrar Marina, aceitamos até uma “PSTU-ização”.

Até quando acertamos muito, temos dificuldades enormes em reconhecer isso. A incorporação da luta contra a criminalização da pobreza ainda não foi assimilada por todos. Esta é uma luta justa e transformadora, mesmo que ainda se cometa o erro de achar que o extermínio só se dá com rajadas de AR-15. Colocar os mais pobres em locais onde a injustiça ambiental faça parte de sua vida, tem um potencial assassino tão grande ou maior quanto os autos de resistência. As doenças respiratórias são causa importante de mortes nas comunidades ao longo da Avenida Brasil, assim como a leptospirose após as cheias na Baixada, ou a diarréia nas comunidades sem saneamento.

Reagimos com indignação ao reacionarismo explícito dos âncoras da TV, mas não gastamos nenhuma linha para chorar os mortos do clima. Somos os primeiros a abaixo-assinar qualquer moção para soltar alguém na Cochinchina, ou prender alguém no Seiláquistão, mas não temos o que falar sobre as mais de 1 bilhão de pessoas que passam fome diariamente. Chegamos a naturalizar as mortes das cada vez mais repetidas e intensas tragédias climáticas, sejam as já presentes, ou as anunciadas. Delas retiramos qualquer conteúdo de classe, como se a “escolha” de suas vítimas fosse aleatória, ou um “desígnio de deus”, se acreditássemos em algum deles.

Preferimos crer na inevitabilidade do progresso e na libertação da classe de suas amarras. Nosso ecossocialismo é um socialismo com uma vírgula verde. Defendemos a utilização do pré-sal VÍRGULA desde que os recursos sejam usados na educação, saúde, reforma agrária VÍRGULA matrizes limpas e renováveis, como se isso não fosse uma contradição em termos. Nosso socialismo é raso, não se sustenta em uma discussão séria sobre um modelo alternativo à barbárie sócio-ambiental capitalista. É um socialismo envergonhado, que não quer pagar o mico de defender uma sociedade descarbonizada, sem gasolina. Um socialismo meia-boca, que defende a meia passagem ou o passe livre, mas não compra a briga contra o carro individual. A lógica do aqui-e-agora tão cara ao capitalismo, supera de longe qualquer visão de médio prazo.

Mas, qual é mesmo o socialismo que queremos? Não há resposta fácil, nem receita de bolo. O caminho não é glorioso e inexorável, nem existe segurança no êxito final. Apenas a suspeita de que não haverá socialismo construído da forma que vimos fazendo até agora. Um socialismo construído em um planeta 3 graus mais quente será, necessariamente, um socialismo da escassez da água, um socialismo da fome e das tragédias ambientais. Distanciar a sua construção do sofrimento real da maioria da população significa, antes de tudo, distanciá-lo de seus objetivos mais nobres e humanos. Quantos laços verdes, em solidariedade às vitimas do clima, serão necessários?