9 de fevereiro de 2009

O FSM é incooptável e precisa ser ecossocialista

Entrevista concedida à Agência Petroleira de Notícias em 04/02/2009
disponível em http://www.apn.org.br/apn/index.php?option=com_content&task=view&id=897&Itemid=1

Acho que a melhor definição que ouvi sobre o que foi o FSM 2009, partiu de um companheiro que disse: "Apesar de todo o esforço de se tentar institucionalizar o Fórum, ele não foi cooptado. O FSM é incooptável!".

Neste primeiro Fórum realizado após a deflagração da crise global do capitalismo, e também após Nairóbi, onde o Fórum experimentou uma inflexão institucional, existiam muitas dúvidas a respeito do que iria acontecer em Belém, e sobre sua própria continuidade, pelo menos no âmbito da esquerda. Quando chegamos a Belém, rapidamente percebemos uma tentativa de apartar o Fórum da população, em especial a mais pobre.

Isto ficava claro no preço da inscrição, na segurança nos portões, e também numa ridícula Lei Seca que obrigava o fechamento dos bares (somente) dos bairros populares às 22h. É importante dizer que os 2 principais locais usados para as atividades eram separados do bairro mais miserável de Belém - Terra Firme - por um valão de esgoto e uma pista estreita de asfalto. Mas esse 'apartheid" durou apenas até a Marcha de abertura, quando a população de Belém teve a dimensão do que seria o FSM.

Aliás, é cada vez mais complicado falar em um Fórum; em Belém tivemos pelo menos três; o Fórum institucionalizado, dominado pelo PT e o governo Lula; o Fórum "supermercado de idéias", com milhares de atividades de todos os tipos; e o Fórum anticapitalista. Inevitavelmente estes três Fóruns acabaram se cruzando e contaminando positivamente as quase 150 mil pessoas que, de alguma maneira, participaram do Fórum.

Para as esquerdas, o FSM voltou a ser um importante instrumento de sua reorganização na luta anticapitalista. Inúmeras mesas discutiram a crise global, nos seus diversos matizes. Algumas convergências importantes ocorreram, como a reunião dos partidos anticapitalistas, que reuniu representantes de partidos do mundo todo. A palavra de ordem: "Que os ricos paguem a conta" estava estampada nas paredes e faixas, e pôde ser ouvida nos mais diferentes idiomas. Um calendário de lutas global e unificado foi aprovado, assim como foi aprovada uma declaração que responsabiliza o neoliberalismo pela crise, e se coloca contra as demissões e o corte nos salários.

Mas, de fato, a questão ambiental foi a mais importante no FSM, até pelo seu local de realização, na Amazônia. Apesar da tentativa do governo em tentar "esconder" a Amazônia do Fórum, que se mostrou infrutífera, existiu um amplo consenso em torno da importância da Amazônia para o planeta, de que é urgente a sua defesa, e, finalmente, de que essa ação não é somente responsabilidade das populações locais, mas uma tarefa de todo o planeta. Ficou clara a responsabilidade das madeireiras, agronegócio, mineradoras, pecuária e do governo, nos ataques desferidos contra a floresta.

Durante o Fórum aconteceram diversas atividades dos ecossocialistas, sempre com "casa cheia", onde propusemos a bandeira "Desmatamento Zero para a Amazônia Já!". Nestas atividades foi marcante a presença da juventude, interessada em participar da luta ecológica. A Rede Ecossocialista Internacional lançou no Fórum o II Manifesto Ecossocialista, a Carta de Belém. Nele está a condenação do modo de produção capitalista, como responsável pela degradação ambiental, cuja face mais visível são as mudanças climáticas provocadas pelo aumento da concentração dos gases formadores do efeito estufa na atmosfera. Dessa forma, não é surpresa que as respostas capitalistas à crise ambiental venham se mostrando insuficientes.

Este Manifesto conclama a todos e todas que habitam o planeta a rejeitar o processo desastroso do ecocídio capitalista, e a engajarem-se na luta pela construção de uma nova sociedade, com uma economia transformada fundada nos valores não-monetários de justiça social e de equilíbrio ecológico.

Após o FSM, a Rede Ecossocialista Internacional e a Rede Ecossocialista Brasileira realizaram uma reunião para discutir sua organização e seu programa de lutas para o próximo período. Dessa forma, podemos dizer que, se o perigo do do descontrole do clima existe e é cada vez mais real, por outro lado o FSM foi importante para a organização da resistência e do combate aos que destroem a Natureza.

A necessidade de re-qualificar a campanha “O Petróleo tem que ser nosso” sob o olhar ecossocialista

Publicado em 18/12/2008
em http://www.enlace.org.br/ecologia-1/a-necessidade-de-re-qualificar-a-campanha-201co-petroleo-tem-que-ser-nosso201d-sob-o-olhar-ecossocialista-paulo-piramba/

A armadilha em que o capitalismo nos meteu. Responsáveis por mais de 81% da energia consumida no mundo, os combustíveis fósseis encontram-se perto de seu esgotamento. Os especialistas calculam que, mesmo com novas descobertas do tipo da reservas abaixo da camada do pré-sal, o petróleo e o carvão estarão esgotados nos próximos 40-100 anos. Durante décadas as grandes empresas petrolíferas e países produtores boicotaram quaisquer pesquisas sobre formas alternativas de produção de energia, assim como cuidados para diminuição da emissão de gases poluentes, em especial o CO2 que é um dos principais causadores do efeito estufa. Se hoje temos catalisadores industriais e nos veículos e combustíveis menos poluentes, isto se deve à pressão da sociedade e dos ecologistas sobre os governos.

Além dos veículos e da produção industrial, os combustíveis fósseis também são usados na produção de energia elétrica. O carvão consegue ser ainda mais poluente que o petróleo, causando problemas de saúde na extração e nas partículas jogadas na atmosfera pela usinas termelétricas. A energia nuclear vem sendo apresentada como "limpa e segura", apesar continuarem insolúveis os problemas ligados à operação, manipulação e armazenamento do lixo radioativo. Outro problema é a utilização da tecnologia nuclear na produção de armas nucleares ou navios e submarinos. É dessa forma que entramos no século XXI: pressionados, por um lado, pelo esgotamento da matriz energética hegemônica no mundo; e, por outro, tendo que, rapidamente, substituir esta matriz por outra (ou outras) que interrompam o ciclo de aquecimento do planeta.

Apocalipse motorizado. Pegando o Rio de Janeiro como exemplo, em 2007, 38.220 pessoas foram vítimas da violência no trânsito no Estado do Rio de Janeiro. 18.235 apenas na Capital, contra 15.724 em 2006. Atualmente, 7 pessoas morrem por dia no Rio. A quantidade de vítimas fatais certamente é maior, já que as estatísticas não acompanham o histórico pós-acidentes dos feridos. Estima-se que circulam no Rio cerca de 2,2 milhões de veículos, sendo 90% deles automóveis movidos a gasolina e a álcool, e 10% ônibus e caminhões a óleo diesel. Em média, o carioca perde 2 horas e 10 minutos indo e voltando diariamente do trabalho. Dados da FEEMA, em 2006, atribuem às fontes móveis (automóveis, caminhões, ônibus, etc.) a responsabilidade por 77% dos poluentes emitidos para a atmosfera, que têm contribuído para o aumento das doenças respiratórias. O trânsito também é responsável pela poluição sonora, pelo stress provocado pelo tempo gasto no transporte e pelas relações cada vez mais violentas que ele vem estabelecendo.

Individualismo insustentável. Quando privatiza as cidades, o neoliberalismo impõe soluções e caminhos que favorecem as classes dominantes. Em termos da mobilidade e do deslocamento urbano, ele se materializa na supremacia dos veículos individuais sobre os meios coletivos de transporte. No Rio de Janeiro, as últimas grandes intervenções urbanas foram feitas para facilitar o deslocamento dos automóveis. Enquanto isso, o Metrô cresce a passos de tartaruga, os ônibus trafegam na rota da falta de planejamento e controle e os trens atendem a uma parcela pequena comparada ao que atendiam anos atrás. A precariedade do transporte coletivo faz com que o carro, além de ser um fetiche para os mais ricos, torne-se uma solução também para os mais pobres. A produção nacional de carros, juntamente com as facilidades para o crédito e a importação, vem provocando um aumento exponencial da frota nacional, principalmente nas grandes concentrações urbanas de São Paulo e do Rio de Janeiro. O impacto dessa gastança sobre o aquecimento global e as mudanças climáticas já está sendo sentido. É necessário apontar para outro modelo de civilização que supere essa escalada da insensatez.

Agrocombustíveis: uma resposta sem energia. De 3 anos para cá, os agrocombustíveis como o biodiesel e o etanol, começaram a ser apresentados como uma solução "verde" para os problemas do aquecimento global. As grandes petroleiras, entre elas a Petrobras, começaram a se intitular "empresas de energia", enquanto as montadoras se apressaram a apresentar modelos de carros "flex", "verdes", ou coisa que o valha. A grande vedete é o etanol, combustível fabricado a partir da cana de açúcar, da palma do dendê, do milho e de outros grãos, um combustível renovável e "limpo", reduzindo assim a emissão de gases formadores do efeito estufa. A União Européia tem avançado em estabelecer um programa de redução de emissão de CO2. Os Estados Unidos têm direcionado grande parte de sua produção de milho para a produção de etanol. No Brasil, o etanol fabricado a partir da cana é um dos carros-chefe do governo Lula, saudado internacionalmente como modelo a ser seguido. Porém...

Porém é preciso dizer que o etanol só poderá ser considerado um substituto do petróleo, se os padrões de consumo e desperdício de combustíveis forem revistos, ou seja, se o próprio capitalismo, que é viciado em petróleo, for questionado, o que não é o caso. A serem mantidos os atuais padrões, vai ser necessário que se avance ainda mais para dentro da Amazônia e remanescentes de outras florestas tropicais, e que as áreas hoje destinadas á produção de alimentos sejam convertidas em grandes desertos verdes. É preciso dizer também que a moda do etanol surgiu a partir da necessidade do capital financeiro encontrar novos mercados, por conta da crise 'subprime'. E que ele conseguiu, dos governos dos EUA e da União Européia, subsídios para a agroindústria dos agrocombustíveis.

É preciso dizer que não existirão ganhos ambientais nessa substituição de matrizes de geração de energia, já que os possíveis ganhos obtidos na queima do etanol serão menores que os passivos ambientais gerados na produção do etanol. Para se produzir um litro de etanol do milho, é necessária mais energia do que a gerada por esta quantidade do combustível. O que ainda resta das florestas tropicais asiáticas tem sido devastada para a plantação da palma do dendê. No Brasil, o deserto verde da cana empobrece a biodiversidade, empurra a fronteira agropecuária para dentro dos biomas do Pantanal e da Amazônia e explora a mão de obra dos bóias-frias, submetendo-os a condições de trabalho mais severas do que a dos escravos. No Brasil e no Mundo a destinação de terras e de grãos para a produção dos agrocombustíveis, acirra ainda mais a fome e subnutrição.

A saída não é a nave espacial. O ministro de Assuntos Estratégicos, Esotéricos e Esquisitos Mangabeira Unger afirmou recentemente que "mesmo se a Terra definhar, acharemos um meio de escapar para outros pontos do Universo". Como certamente o preço da passagem para Alfa-Centauro não vai ser objeto de promoção na Internet, é mais adequado pensarmos em alternativas energéticas que não comprometam o futuro do planeta. E, nesse sentido, convém não cometermos os mesmos erros como, por exemplo, colocar todas as fichas em uma única matriz alternativa, ou criarmos grandes unidades de produção de seja lá qual for a matriz, produzindo intervenções agressivas ao meio ambiente. A palavra de ordem é diversificar as fontes e descentralizar a produção. Tudo isso, evidentemente, submetido a uma nova lógica de consumo de produção de bens agregada à supremacia do valor de uso em relação ao valor de troca. Hoje, já é possível produzir energia elétrica usando a matriz eólica, como no caso das fazendas eólicas da península Ibérica e nos países nórdicos. A energia solar só não está mais desenvolvida, porque os investimentos em pesquisa ainda são muito reduzidos. O próprio etanol e a biomassa são saídas inteligentes se não estivermos submetidos ao padrão de consumo capitalista. Ou seja, não é suficiente substituir a matriz fóssil por uma, ou uma série de matrizes limpas. É preciso reduzir drasticamente o consumo de energia, combinado com uma profunda transformação do sistema energético, em termos de descentralização, diversificação e eficiência.

A questão não é participar ou não da Campanha, mas como participar e propondo o que. Militantes comunistas sempre participaram de campanhas do tipo "frente única". Nestas campanhas é freqüente que as bandeiras de luta e palavras de ordem não sejam exatamente as desejadas por eles, que devem abraçar a campanha, ganhando legitimidade para, se possível, tentar apresentar propostas mais conseqüentes. Nesse sentido, não existe polêmica em relação à nossa participação na Campanha "O Petróleo tem que ser nosso". Devemos, através da legitimidade conquistada, do diálogo e do convencimento avançar na formulação de propostas anticapitalistas. Para isso, nossa primeira tarefa é nos engajarmos na Campanha, ampliando-a para nossas áreas de atuação, seja divulgando suas atividades, seja, quando possível, promovendo debates, no sentido de acumular forças para a resistência ao leilão marcado para o dia 18/12.

O Petróleo tem que ser nosso... Para quê? Mesmo que a palavra de ordem "O Petróleo tem que ser nosso" signifique um avanço em relação ao primeiro momento da Campanha – que tinha um cunho muito nacionalista – devemos defender dentro dela que não nos basta ter o controle sobre ele, mas criar condições para que a transição da atual matriz energética para as alternativas colocadas, leve em consideração a relação entre estas alternativas e as mudanças climáticas, e aplicar parte importante dos lucros obtidos com a exploração das novas jazidas, além da educação e saúde, na pesquisa e aperfeiçoamento das matrizes solar e eólica. Devemos questionar, também, entendimentos que defendam o aumento da produtividade da Petrobrás, sem questionamento aos modelos de consumo capitalistas, responsáveis pelo esgotamento dos combustíveis fósseis e pelo aquecimento global. Racionalizar a produção e diminuir o consumo são medidas decisivas para manter a temperatura da Terra dentro dos limites estabelecidos pelo IPCC, evitando conseqüências ainda mais graves do que as que estão se repetindo ao redor do planeta. Trazer a questão da matriz energética e das mudanças climáticas para dentro da Campanha, amplia seu escopo da luta, questiona e responsabiliza o modelo consumista e esbanjador do capitalismo.

A re-estatização da Petrobras não é garantia em si; a Petrobrás tem que ser pública. É importante, nessa discussão, recuperar o conceito de empresa estatal e de empresa pública. Empresa pública é aquela cuja atuação é voltada para o interesse da maioria da população, o que não acontece, necessariamente, com as empresas ou organismos estatais. O Banco Central, por exemplo, é estatal, mas está a serviço permanente dos interesses da burguesia financeira. É interessante lembrar como a discussão sobre a autonomia do Banco Central, tão defendida pelos conservadores nos primeiros anos do governo Lula, não se coloca mais, totalmente superada pela subserviência deste governo ao capital financeiro. Não existe, portanto, garantia em si que a simples re-estatização da Petrobrás, recuperando o controle estatal sobre ela, a partir do controle das ações hoje de posse de investidores/ especuladores internacionais, signifique uma inflexão na trajetória da empresa, voltada para o lucro, esgotamento dos recursos naturais e agressão ao meio ambiente. A Petrobras não faz outra coisa hoje, a não ser concretizar as políticas do governo Lula, que tem exatamente essa relação com os recursos e com o meio ambiente, seja no apoio ao agronegócio, na estratégia destruidora no Centro-Oeste e Amazônia, nas obras do PAC e IIRSA, etc. É preciso que essa crítica ao governo seja claramente feita pela Campanha. De que vale a população brasileira ter a posse das riquezas naturais, se a lógica de exploração e esgotamento, na busca do lucro, se mantiver?

A Petrobrás não pode continuar desrespeitando o meio ambiente. A Petrobrás, assim como as empresas petroleiras em geral, é uma campeã em desrespeito à legislação ambiental, e uma das maiores causadoras de passivos ambientais do mundo. A defesa de uma Petrobrás pública passa pela condenação do modelo atual de empresa, que negligencia a segurança de seus funcionários e do meio ambiente, para aumentar a produtividade e o lucro. Além disso, a empresa, até pouco tempo atrás, utilizava pretensas "responsabilidades social e ambiental" nas propagandas institucionais, para alavancar o preço de suas ações na Bolsa de Nova Iorque. O recente episódio do enxofre no diesel, quando ela, em conluio com as montadoras de veículos, e com a vacilação da Justiça e do Ministério do Meio Ambiente, conseguiu o adiamento da utilização de um diesel com menor teor de enxofre no Brasil, mostra o descaso da empresa com a saúde do povo brasileiro. Na Baixada Fluminense, até hoje, 8 anos depois do derramamento de óleo na Baía da Guanabara, centenas de pescadores do fundo da Baía continuam sem poder trabalhar, já que os efeitos do óleo derramado nos manguezais ainda contaminam os peixes. É preciso defender uma Petrobras verdadeiramente responsável, tanto do ponto de vista social e público, como também do ponto de vista ambiental.

Pensando uma Reforma Urbana Ecossocialista

Publicado em setembro de 2008
em http://www.socialismo.org.br/portal/socialismo-liberdade-e-poder-local/308-pensando-uma-reforma-urbana-ecossocialista

Introdução

As questões ambientais vêm ocupando tal espaço, que poucos de nós percebemos que palavras e expressões como "ecossistema" e "impacto ambiental", até pouco tempo atrás, eram de uso exclusivo de pesquisadores, técnicos e militantes da área. Além da inserção na mídia, é cada vez mais comum sua presença nas agendas dos partidos, organizações e movimentos. Em muito contribuiu a divulgação dos relatórios do IPCC (sigla em inglês de Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), que colocou a atividade humana como principal responsável pelas mudanças climáticas.

Desde as décadas de 1930-40 a população brasileira vem se tornando mais urbana, chegando a 153 milhões de pessoas (81% da população) vivendo em áreas urbanas em 2006, segundo o IBGE. Estas cidades – algumas delas, megalópoles – recebem um fluxo populacional, que cria uma demanda por serviços e equipamentos sociais em uma proporção muito maior do que elas têm condições de atender.

Este quadro tende a piorar com as mudanças climáticas anunciadas pelo IPCC. Falta d'água, doenças silvestres ou provocadas pela poluição do ar, sonora, da água e do solo já são comuns hoje. Nas cidades que substituíram a cobertura vegetal pelo concreto, ondas de calor as transformarão em fornalhas. Temporais de curta duração, mas com grande intensidade, provocarão enchentes nas cidades impermeabilizadas pelo asfalto.

Pensar em uma solução para este modelo inviável de cidade significa pensar, também, em outro modelo econômico, que seja construído em torno do atendimento das reais necessidades da maioria de suas populações. O socialismo continua sendo vital como o ar e a água. E mostrará mais vitalidade, se puder se reconstruir como idéia libertária, generosa e transformadora, que leva em conta a continuidade da vida no planeta.

A cidade e a ordem neoliberal

Não há como pensar em políticas públicas ambientais para as cidades, sem levar em conta como elas estão organizadas. No neoliberalismo, a cidade, assim como a economia, é pensada para poucos. A maneira como ela se organiza, de que maneira ela se expande, os equipamentos sociais acrescentados, a sua relação com a natureza e entre seus habitantes, tudo isso é feito para uma minoria, os seus cidadãos e cidadãs "de primeira categoria". Como na antiga Atenas, onde para cada cidadão chegou-se a ter 18 escravos, para cada "incluído" na cidade neoliberal, existem dezenas de cidadãos de "segunda categoria", organizados social e geograficamente para atender às necessidades dos primeiros.

A especulação imobiliária cria condomínios com segurança e conforto, e segrega seus empregados em "bantustões", com precárias condições ambientais, sem saneamento, próximos de indústrias poluentes ou de cursos d'água envenenados. Na maioria das vezes, estes guetos ficam longe dos locais de trabalho, servidos por transportes lentos, insuficientes e poluentes. Enquanto isso, mais e mais carros são produzidos, contribuindo para a emissão de CO2 e gerando engarrafamentos.

O neoliberalismo incentiva o consumismo e submete grande parte da população ao desemprego estrutural e à pauperização dos salários. Para estes só resta construir moradias em áreas degradadas ou em locais de preservação ambiental, onde são acusados de agressão ambiental e ameaçados de remoção. Esta necessidade de consumir é alimentada por outdoors colocados em locais que obstruem a visão do que resta de natureza, ou por carros e sistemas de som estridentes, que contribuem para a poluição visual ou sonora, assim como os equipamentos urbanos de mau gosto, ou os ruídos do trânsito.

Quase todas as cidades têm, ou terão em breve, problemas de fornecimento e tratamento de água. O neoliberalismo tem se apropriado destes serviços. A perda do controle do Estado sobre a água pode levar a que enormes contingentes populacionais não tenham acesso a ela. 83 milhões de pessoas não são atendidas por sistemas de esgotos e 45 milhões carecem de água potável. 65% das internações hospitalares de crianças de zero a cinco anos são em con­seqüência dessa precariedade.

São produzidas cerca de 150 mil toneladas diárias de lixo, sendo que, em grande parte das grandes cidades, ele é despejado em lixões, contaminando fontes de água, o solo e o ar. A privatização do setor de limpeza pública não reduziu os índices de resíduos sólidos urbanos dispostos de maneira inadequada.

Tecnologias envelhecidas e poluentes, com consumo elevado de energia e água, sem tratamento adequado dos efluentes; inexistência de sistemas adequados de eliminação dos resíduos perigosos; fábricas perto de áreas urbanas ou de zonas de proteção ambiental; descargas de efluentes em águas de superfície ou subterrâneas; e armazenamento inadequado de resíduos, são causas da poluição industrial, que destrói o ambiente e ameaça a saúde dos trabalhadores – já submetidos a um regime de trabalho repetitivo e estressante – e dos habitantes que mo­ram em torno das fábricas.

Os governos locais não têm dinheiro, nem vontade política para resolver estes problemas. O governo federal concentra cada vez mais os recursos, com grande parte destinada ao superávit primário. Obras de saneamento, de oferecimento de água potável e de tratamento de resíduos são vistas como "obras que não dão voto", o que faz com que os recursos municipais sejam usados em obras de importância duvidosa, mas com visibilidade.

O resultado é a violência. Os governos apostam no uso das forças de repressão para confinar, controlar e exterminar o que Michael Löwy chamou de pobretariado. A repressão também têm se ocupado em combater a chamada "desordem urbana" neoliberal, ou seja, aquilo que se contrapõe e conflita com a "cidade para poucos", reprimindo os trabalhadores informais, removendo populações de áreas anteriormente sem valor, mas agora com alguma importância especulativa ou econômica, ou ainda proibindo as oferendas e demais manifestações das religiões afro-brasileiras.

Pensando uma Reforma Urbana Ecossocialista

A expansão descontrolada das cidades, a privatização dos serviços públicos e a especulação imobiliária, levaram à privatização da cidade, além da degradação do solo urbano e a eliminação das áreas verdes. A utilização das "áreas nobres" em empreendimentos comerciais afastou as pessoas do centro da cidade, aumentando o tempo gasto no transporte. A opção pelo transporte individual, em detrimento do transporte coletivo, aumentou a dispersão dos gases do efeito estufa, além do stress provocado pelos engarrafamentos.

De acordo com cálculos da ONU, as cidades estão crescendo nos países dependentes três vezes mais rápido que nos países capitalistas ricos, e os problemas ambientais são bem mais extensos naquelas cidades. A poluição do ar, provocada pelos automóveis e indústrias, combinada com a inversão térmica causada pelo efeito estufa, chegam a paralisar megalópoles. Na maioria destas cidades o lixo é acumulado em vazadouros ou queimado em lixões.

É necessária uma Reforma Urbana Ecológica tão radical quanto a Reforma Agrária Ecológica defendida pelos movimentos sociais. Uma Reforma Urbana que inverta prioridades e garanta a participação popular na decisão e no controle dos projetos, mas que também incorpore uma perspectiva ecológica nos Planos Diretores. Devolver a cidade a seus cidadãos, garantindo total acesso aos espaços e serviços públicos, à cultura, à moradia, à educação, à saúde, ao trabalho, ao transporte e ao lazer, em uma relação sustentável com a natureza.

A seguir, alguns tópicos e propostas que devem estar presentes na construção de um programa ecossocialista para as cidades:

1) Aquecimento Global

Metas de redução de emissão dos gases do efeito estufa;

Substituição do diesel pelo álcool e o gás nos ônibus e na frota oficial.

2) Acesso à água

Universalizar o acesso à água, que deve ser oferecida pelo Estado, com gestão pública e controle social;

Prioridade do abastecimento doméstico sobre o uso industrial;

Uso social da água, aumentando a tarifa das grandes indústrias, usando o arrecadado na recuperação da bacia de origem.

3) Tratamento de Resíduos Sólidos e Saneamento

Saneamento e água potável para populações de baixa renda;

Utilização do biogás nos aterros sanitários;

Organizar os catadores em associações e cooperativas, oferecendo programas de inclusão;

Reciclar o entulho da construção civil, utilizando-o em programas de habitação popular;

Implantar usinas de compostagem dos resíduos orgânicos em alternativa aos lixões;

3) Poluentes Industriais e Saúde

Criar mecanismos tributários de incentivo a indústrias limpas e tributação de práticas poluidoras;

Integrar o trabalho da vigilância sanitária com os órgãos de defesa da saúde do trabalhador, visando diminuir os impactos de manuseio ou contato com substâncias, irradiações, ruídos e temperaturas que afetem a saúde do trabalhador;

Alterar a organização, regime e condições de trabalho, em busca de ambientes de trabalho menos estressantes e atividades menos repetitivas.

4) Reforma Urbana Ecológica

Garantir o direito à moradia digna, com água potável e tratamento de esgotos, em locais seguros que não ameacem as reservas ambientais;

Regularizar a posse da terra nas ocupações, preservando mananciais e áreas de preservação;

Recuperar áreas degradadas das grandes cidades, destinando-as a projetos de habitação popular social e ambientalmente sustentadas;

Planos Diretores ecológicos, que levem em conta o uso social do solo urbano e o conceito de pegada ecológica (1).

5) Transporte

Transporte coletivo rápido e não-poluente, com combustíveis renováveis;

Recuperar as malhas ferroviárias urbanas, retomando os ramais abandonados pelas empresas privadas.

6) Segurança Alimentar e Reforma Agrária Ecológica

Criar pólos agroflorestais em torno das grandes regiões metropolitanas, com prioridade para reassentamento de ex-agricultores habitantes das suas periferias;

Estimular a compra, nas instituições públicas, de produtos da agricultura ecológica familiar.

7) Transgênicos e Biodiversidade

Aplicar a lei que identifica produtos que utilizam transgênicos;

Proibir a compra, pelas instituições públicas, destes alimentos;

Combater o tráfico de animais silvestres.

(1) Pegada ecológica é a tradução de ecological footprint e refere-se à quantidade de terra e água necessária para sustentar as gerações atuais, tendo em conta todos os recursos materiais e energéticos gastos por uma determinada população. (fonte: Wikipedia)