A imagem ao lado mostra uma cena que não é nova. Um índio, no caso Raoni kayapó, mostra sua indignação em uma reunião com brancos politicamente corretos, em atitude repeitosa.
Poderia ser aquela outra índia, também kayapó, que em 2008 passou o facão no presidente da Eletronorte, numa audiência pública também sobre Belo Monte, no que a revista Veja na época (sem trocadilho) considerou um ataque de “selvagens amazônicos”. http://veja.abril.com.br/280508/p_064.shtml
Desta vez quem teve que aturar impassível o dedo de Raoni, a centímetros de sua cara, foi o aspone da vez Rogério Sotilli, secretário executivo da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, que tinha se refugiado previamente no FSM de Dakar.
Provavelmente as imagens correrão o mundo. Nos países desenvolvidos não faltarão aqueles que se solidarizarão com o “selvagem” que defende sua terra. Outros se lembrarão de Avatar, mesmo que o herói do filme (como brilhantemente percebeu Zizek) seja o colonizador.
Já para o Quarto Mundo, como o ecossocialista Joel Kovel chama os indígenas e povos “sem Estado”, nenhuma novidade. Só mais um capítulo do modelo de “diálogo” que os assim chamados governos progressistas, principalmente os daqui da América Latina, tem praticado.
Nas palavras do próprio aspone de plantão: “Lula prometeu que não enfiaria Belo Monte goela abaixo das populações do Xingu. Sempre ouvi dizer que houve muito diálogo. Talvez, com o que vocês dizem agora, não foi tanto assim (…) Dilma fará o que tem que ser feito. (…) Dilma tem que pensar o Brasil como um todo, atender todos os interesses, incluir toda a nação. (…) Garanto que vamos dialogar, mas claro, podemos não chegar a um consenso”.
Ah, os “interesses do Brasil”, quanta barbárie socio ambiental já se cometeu, e continuará se cometendo, em seu nome. A fala do aspone governamental é clara. Os interesses de todos são muito mais importantes do que os de um pequeno bando de sujeitos, com penas na cabeça e botoques nos beiços.
Todos quem, cara pálida, deve ter pensado Raoni. Se não pensou, penso eu. A construção de Belo Monte tem sido defendida pelos tecnocratas de plantão como a última fronteira entre o fim dos apagões e as cavernas sem luz. Sem a usina de Belo Monte, o Brasil pára, vociferam os editoriais da grande mídia.
Já entre quem deveria estar do nosso lado, existem também defensores do belo monstro que está sendo parido no ventre do desenvolvimentismo, se me perdoam a metáfora gongórica e naftalinesca.Os eco-capitalistas do WWF-Brasil, por exemplo, não são contra desde que “exista um planejamento estratégico da Amazônia como um todo”.
Há também os que, como Luiz Pinguelli, usam a caratonha das usinas termelétricas e nucleares para justificar o “mal menor”. Seria bom estas pessoas passarem o Carnaval no Xingú para explicarem às etnias ameaçadas esse conceito de mal menor.
Finalmente, existem aqueles que se encontram em um Belo Muro,como o SOS Mata Atlântica, “que está voltado para outro bioma”, criando jurisprudência de que desmatamento em bioma dos outros é refresco. Já a senadora Marina, bom a senadora Marina defende a transparência do processo, sem ter opinião pública a favor ou contra.
Já para os 600 mil e pouquinhos cidadãos e cidadãs que assinaram um manifesto contra a construção de Belo Monte, e para vários cientistas e pesquisadores, este processo tem sido um belo monte de meias verdades e mentiras completas, tal como a licença que foi dada pelo Imbroma.
A começar pela energia gerada. 11 megawatts por mês trombeteiam as fanfarras de Brasília. 4 megawatts retrucam os especialistas independentes, devido a vazão do rio. Tá, pode argumentar o nobre leitor, 4 megawatts já são um belo acréscimo para um país tão necessitado de energia para se desenvolver.
Para onde irá a energia gerada por Belo Monte. Se for para fora da Amazônia, teremos de acrescentar o custo da sua transmissão, isso sem falar na qualidade da operação que, por falar nisso, estará a cargo da CHESF, aquela responsável pelo apagão recente no NE.
Essa energia será, dessa forma, muito cara. Certamente não será o “povo pobre e excluído da Amazônia”, como afirma o site do governo do Pará em http://www.pa.gov.br/destaques_gov.asp?id_not=27. Então quem ficará com a energia gerada por Belo Monte? Duas indústrias de alumina que se intalariam no Pará. Outra dica importante é esmiuçar quais foram as empresas que se interessaram em formar consórcios para a construção da usina: Vale, Neoenergia, Votorantim Alumínio e Andrade Gutiierrez. Todas ligadas a indústrias eletrointensivas.
E sobre o argumento de Belo Monte ser uma defesa contra as termelétricas e nucleares, só um lembrete. Minas Gerais, que não é um estado litorâneo, tem potencial eólico 3,5 maior do que Belo Monte. Uma fazenda eólica que começou a ser construída em Norfolk, Inglaterra, gerará 1,1 TERAwatts, com um investimento de US$ 1,5 bilhão. Comparando este empreendimento com uma usina que vai produzir, em média, 4 GIGAwatts (1 Tera = 1000 Gigas), a um custo que pode chegar a US$ 10 bilhões, o desenho do belo monstro começa a tomar forma.
Mas existe um outro custo não contabilizado, muito maior do que esse. Belo Monte é mais um capítulo de um sistema que quer se manter vivo a qualquer preço. Que vende uma idéia de progresso e desenvolvimento sem limites. Que passa por cima de tudo e de todos que se colocarem no seu caminho. Que se coloca como se fosse dono e explorador da natureza.
Esses conceitos de desenvolvimento a qualquer preço, de um progresso ilimitado e infinito e do homem se colocando à parte da natureza, para poder explorá-la, são conceitos da civilização branca, européia, ocidental, cristã, masculina, largamente hegemônica no planeta. E que, é bom que se diga, nos trouxe até à beira da barbárie sócio ambiental que as mudanças climáticas já estão provocando.
Lá no Xingú, quem está no caminjho dessa civilização que coisifica seres humanos e coisas, a tudo atribuindo um preço, de acordo com o valor de mercado, são comunidades indígenas e ribeirinhas, que se colocam como parte da natureza, e que dela dependem para sua sobrevivência pessoal e de suas culturas.
O cacique e a índia Kayapós, com seus botoques e seus peitos de fora, quando capturados pelas câmeras nas reuniões com tecnocratas ou aspones engravatados, mostram diferenças muito além das roupas que usam ou não. O nosso olhar ideologicamente domesticado, mesmo prenhe de boas intenções, acaba, a partir de símbolos exteriores, prejulgando esse choque civilizatório.
E aí, para a maioria de nós, o civilizado é a gravata e não a pena de ave, mesmo que a gravata represente a inviabilidade de uma civilização que parece determinada a se extinguir, levando com ela boa parte da biodiversidade. O índio pelado com pena na cabeça é apenas o “bom selvagem”, que deve ser preservado em reservas-gaiolas cada vez menores, como um pet, como gostam de falar os incluídos.
Mesmo que o seu modo de viver, ou de bem viver, representado pela pena ou o botoque, esteja, como o dedo em riste de Raoni, a poucos centímetros nossas caras, mostrando que existe alternativa ao caos climático e à tragédia socio ambiental anunciadas.
O Racismo é uma ferramenta cara ao capitalismo, que sempre explorou as diferenças para estabelecer um poder sobre classes, raças, povos e etnias. Poder esse necessário para explorá-las e, em caso de necessidade, exterminá-las.
Em relação ao meio ambiente, o Racismo Ambiental é uma maneira de afirmar a superioridade de um modelo civilizatório, mesmo que Roma já esteja em chamas. E de negar outro que valoriza as coisas, as espécies e as pessoas pelo o que elas são, estabelecendo um outra relação, mais harmoniosa, com a natureza.