17 de abril de 2010

Chuvas no Rio: nem tudo vale a pena

Os números realmente impressionam. Em menos de 12 horas choveu na cidade do Rio de Janeiro, e em parte de sua Região Metropolitana, o equivalente a dois meses de chuva. Uma média de 270mm, enquanto o índice normal para o mês de abril é de 140mm. Até o momento em que escrevo, já foram confirmadas pelo menos 95 mortes.

A causa mais imediata para esse extremo climático de gigantesca proporção é a combinação de uma frente fria, com o contraste entre o ar polar e o ar quente tropical, aliado à temperatura do mar, 2ºC mais quente do que o normal. Além disso, a maré alta contribuiu para que o alagamento das áreas urbanas do Rio, já muito impermeabilizadas, não escoasse.

Além do triste saldo de mortes, quase todas provocadas por deslizamentos de encostas, o caos se instalou na cidade. O alagamento das vias impediu a passagem dos veículos, fazendo com que milhares de pessoas não chegassem em casa. Muitos dormiram na rua na noite de segunda-feira. Na terça, a cidade viveu um feriado forçado, já que escolas, universidades e poder judiciário suspenderam suas atividades. Mas muitos bancos, lojas e escritórios de grandes e pequenas empresas também não funcionaram, já que seus empregados e clientes não tiveram como se locomover. As já normalmente ineficientes empresas privadas de fornecimento de energia contabilizam milhares de casas sem luz desde a noite de segunda.

O prefeito do Rio coloca a culpa do colapso da cidade "nas fortes chuvas, na maré alta, na ocupação irregular das encostas e nas pessoas que insistem em morar nelas". Não deixa de alfinetar os "demagogos de plantão" que, segundo ele, "criticam os reassentamentos de moradores de áreas de risco". E ainda dá "nota zero para o preparo da cidade para o temporal".

Em meio a todo o oba-oba da realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas no Rio de Janeiro, os ambientalistas mais críticos – que responsabilizam a sociedade do consumismo e as suas relações com o meio ambiente pela escalada do aquecimento global – insistem que, ao invés de obras de fachada, fossem incluídas na preparação destes eventos intervenções que começassem a preparar a cidade para os efeitos que, certamente, as mudanças climáticas provocarão.

Senão vejamos, o que se espera como resultado do aumento da temperatura média do planeta, em um futuro cada vez mais presente, são exatamente temporais muito mais intensos, em duração e amplitude. O mar, além de mais aquecido, estará em um nível superior ao de hoje, dificultando o escoamento, tanto das águas pluviais, como dos esgotos, pelo envelhecido sistema de escoamento das cidades.

Ao invés de investir na adaptação do Rio de Janeiro aos problemas que afligirão a cidade daqui a algumas décadas, as autoridades de todos os níveis preferem alocar recursos em PACs cosméticos, que não vão alterar as precárias condições de habitação da população mais pobre da cidade. Em intervenções desastradas no ineficiente sistema de transporte público, como a linha 1A do Metrô. Ou então transferindo a culpa para a natureza ou, o que é mais revoltante, para as próprias pessoas que moram em locais em permanente risco e precarização ambiental.

Em décadas de militância nunca vi nenhum morador dessas áreas afirmar que gosta de morar ali onde está. Nunca vi ninguém expor, por opção própria, sua família a uma vida sem água, sem esgoto, sem moradia digna e em permanente risco. O que vi, e continuo vendo, são milhões de pessoas obrigadas a ocupar estes territórios, por força de uma política econômica que achata salários e precariza empregos.

São não-cidadãos colocados à margem da sociedade, invisíveis e tratados como peças de reposição das engrenagens do mercado, para serem usados se e quando necessário. Pessoas confinadas em guetos, onde o Estado só se faz presente através da repressão policial, sem saúde e educação. E que, ao invés de serem alvo de políticas habitacionais que lhes permitam conseguir uma habitação digna, são alocadas e realocadas de acordo com a vontade da especulação imobiliária. As casas do PAC racharam com a primeira chuva. Substituir uma precariedade por outra, não é solução do problema. É troca de cativeiro.

As autoridades do Rio, além de criminalizarem a pobreza, também vêm responsabilizando os moradores de comunidades pela degradação ambiental da cidade. No Rio, muros de confinamento têm sido erguidos sob o álibi de impedirem que os moradores desmatem as encostas. Mas qualquer levantamento por satélite mostra que são os condomínios e mansões que estão ocupando as encostas acima da cota 100, destruindo a Mata Atlântica.

O real objetivo é "limpar" o Rio para que se transforme cada vez mais numa cidade-espetáculo para os ricos, palco de grandes eventos, como desejam hoje autoridades e empresários. Não é mais suficiente condenar milhões à invisibilidade do não-acesso à sociedade do consumo. É necessário varrê-los para baixo do tapete, escondê-los fisicamente com os tapumes da Linha Vermelha, expulsá-los para o mais longe possível, para que as áreas onde eles hoje estão sejam "revitalizadas", como se lá nessas comunidades não houvesse vida.

Ao longo da história, as cidades vêm perdendo sua referência territorial por conta e obra das exigências dos mercados. Ocupar áreas de mangue aterradas ou de várzea, e depois lamentar as inundações tornou-se freqüente. Incentivar o consumo desenfreado, e depois não saber onde colocar o lixo, também. Permitir que as indústrias utilizem e poluam a maior parte da água potável e depois sofrer com a sua escassez vai se tornando uma norma.

Vivemos em um planeta à beira de uma ameaça que pode colocar em risco a sobrevivência das espécies, entre elas a humana. O sistema que polui águas, solos e ar, que vem dilapidando as riquezas naturais e causando uma devastação ambiental dramática, tem a capacidade de destruir também o equilíbrio do clima. Tudo isso pela utilização de modos de produzir e combustíveis que agridem a natureza. Têm valido a pena?

Um comentário:

Unknown disse...

Lições da tragédia

Politização e sensacionalismo contaminaram as análises sobre os desastres provocados pelas chuvas no Sudeste.
Caso São Paulo não fosse governado por José Serra, haveria um escândalo perante o despreparo material da Defesa Civil e dos Corpos de Bombeiros no atendimento imediato às vítimas. Não se trata de incompetência das corporações, mas de negligência administrativa: as cidades ribeirinhas do Estado estavam e continuam entregues às próprias sortes. Também seria a última vez que esses governantes descarados escapariam de fornecer satisfações sobre as fortunas incalculáveis empenhadas nas obras das marginais paulistanas.
As autoridades fluminenses são historicamente omissas na questão das moradias irregulares. Elas preferem assistir ao martírio dos desvalidos a agir com o rigor da legalidade, politicamente desgastante. É óbvio que as famílias alojadas em situação periclitante precisam ser removidas. Como sugerir pretexto “social” para manter seres humanos pendurados em precipícios, à mercê de temporais?
A sociedade precisa reagir à hipocrisia surpresa dos governantes. Ninguém esperava que aqueles casebres de papelão, montados nas enlameadas encostas de morros íngremes, fossem obedecer à lei rudimentar da gravidade? O que as oligarquias conservadoras que dominam São Paulo há quase três décadas fizeram para prevenir o alagamento das ruas da capital, salvo reclamar da atmosfera?
Não se iludam: no ano que vem, as chuvas voltarão. E as verdadeiras responsabilidades passarão incólumes, novamente, até nova mortandade.