A crise não começou agora, nem é somente financeira. Ela é uma crise financeira que, a partir do estouro da bolha subprime, tornou-se uma crise da economia real capitalista. Mas ela também já era uma crise social, mesmo nos melhores momentos do neoliberalismo. Ao invés de trazer o progresso e a satisfação das necessidades dos habitantes do planeta, o endeusamento do deus-mercado e a destruição dos controles do Estado sobre ele, só trouxeram miséria e violência. Além disso, o saque sobre os recursos naturais, com a transformação da natureza em um estoque de mercadorias, trouxe o desequilíbrio ambiental e um enorme risco sobre a continuidade da vida na Terra, por conta do aquecimento global e dos seus efeitos sobre o clima. Este risco, em grande parte, se deve à utilização de combustíveis fósseis, dos quais a civilização se tornou completamente dependente. Hoje, quando estamos à beira de uma crise energética, por causa do esgotamento, neste século, das reservas de petróleo, o mundo se descobre completamente vulnerável, e as alternativas colocadas só aumentam o risco de uma grande catástrofe planetária. Os agrocombustíveis, tido e havidos como alternativas "limpas", a se manter o consumo nas bases atuais, desalojarão e substituirão a produção de alimentos, cuja escassez – assim como a da água potável – já atinge mais de um bilhão de pessoas hoje. Podemos afirmar, dessa forma, que vivemos uma crise sistêmica do capital, uma crise civilizatória.
Mudar para manter. Desmoralizado pela exposição pública do fracasso da lorota do mercado auto-regulado, o capital, após uma perplexidade inicial, tenda remendar o modelo, apresentando propostas de mudanças, que deixam tudo como está, mantendo, no essencial, a espoliação e a exploração. Mesmo que esteja, em vários casos, ferido de morte, o capital financeiro conseguiu impor uma socialização de seus prejuízos, fazendo que os Estados nacionais, aqueles mesmos que até há pouco tempo atrás só atrapalhavam, direcionem bilhões em divisas públicas para socorrê-lo. Além disso, apavorados com o agravamento da crise de superprodução, criam medidas para manter, o quanto for possível, o consumo. A lógica é simples e já conhecida: socializar as perdas, salvar as instituições financeiras e manter a lógica consumista que trouxe a civilização à beira do desastre ambiental. Sobre as outras crises, que atingem mais fortemente os mais pobres, nenhuma palavra, ou, no máximo, lágrimas de crocodilo.
Saídas combinadas. O agravamento desta crise civilizatória abre, por um lado, um cenário de mais sofrimento e dificuldades para a classe e para os mais miseráveis e, por outro, a perspectiva de que a esquerda e os movimentos sociais, que até agora amargavam uma conjuntura extremamente desfavorável e de resistência, possam partir para a ofensiva, apontando as contradições e os perigos que duas décadas de neoliberalismo nos trouxeram. Cabe aos partidos e organizações de esquerda desencadear, junto com os movimentos sociais, uma sistemática e profunda campanha de propaganda e agitação. Mas isso é pouco. É necessário que os do lado de cá também possam apresentar, a partir de uma profunda análise sobre as dimensões e as inúmeras facetas desta crise, uma alternativa de conjunto às propostas dos do lado de lá. Esta saída para a crise do capital deve ser um conjunto de iniciativas combinadas que dêem conta de todas as dimensões da crise. Não se pode pensar em resolver a crise econômica, acreditando ser possível que as demais crises possam esperar. Também não é possível sanar a crise da economia real, mantendo o modelo de produção que nos trouxe até aqui.
As respostas de Lula. Até aqui Lula, e seu governo, tem feito o que dele esperavam os bancos, o agronegócio, as montadoras e a construção civil: transferência de recursos públicos para manter aqueles que são os principais financiadores das campanhas de Lula e seus aliados. O Banco Central tem se mostrado um amigo de todas as horas das instituições financeiras, mesmo que os lucros dos bancos continuem batendo recordes. Ao primeiro chororô do agronegócio, o governo acena com a anistia das dívidas; para as montadoras assustadas com a possibilidade de quebra, dinheiro de nossas reservas para financiar o crédito e manter a farra do carro. E para a construção civil, já agraciada com os gordos contratos do PAC, um cheque especial sem limite. Nada de novo, tudo de acordo com o receituário da submissão petista. A mesma submissão que o governo mostra ao facilitar a depredação da Amazônia, dos recursos naturais e da biodiversidade. Ao manter o crédito do carro, por exemplo, ele agrada as montadoras e, possivelmente, os metalúrgicos, mas agrava ainda mais os problemas de mobilidade urbana, além de agudizar o quadro de doenças e mortes provocadas pela poluição do ar, acelerando o ritmo das mudanças climáticas, pela liberação cada vez maior de CO2. Lula vira garoto propaganda do consumo irracional, e aponta como saída para a crise o PAC, com suas obras de interesse público questionável, mas com passivos ambientais comprovados.
Mudanças climáticas como elemento central da crise sistêmica do capital. Negar a responsabilidade humana nas mudanças climáticas que vamos passar a enfrentar neste século, já é uma batalha perdida para o capitalismo e seus cientistas de aluguel. Estas mudanças provocarão impactos ecológicos, sociais e econômicos, principalmente nos países em desenvolvimento, sobre fontes de água, ecossistemas, biodiversidade, alimentos, regiões costeiras e saúde. Hoje, a luta é pela estabilização da temperatura média global e pela redução drástica da emissão dos gases formadores do efeito estufa. As respostas do capital, como se esperava, têm sido insuficientes, já que as mudanças climáticas exigem uma abordagem social e ambiental de tal monta que colocam capitalismo em cheque, e o planeta frente a uma escolha de sociedade, de civilização. As mudanças climáticas são um elemento central da crise sistêmica do capital: um sistema além de seus limites históricos e físicos, estruturalmente incapaz de agir de forma conseqüente. Neste contexto, não podemos nos deixar aprisionar dentro dos limites estreitos do caráter defensivo atual da luta de classes, e o recuo da consciência socialista na maioria dos países. A situação torna possível combinar agitação sobre exigências muito imediatas e propaganda anticapitalista, ao mesmo tempo muito profunda e direta, e por outro lado "básica e muito pouco ideológica". Exemplo: "este sistema está ultrapassado no seu tempo; o sol, o ar, água, etc. são propriedades comuns". Desta forma, pode ser um elemento importante na recomposição da esquerda e na recuperação do protagonismo do discurso socialista no mundo.
Ir além do capital (e do pós-capital) e de sua lógica destrutiva. No seu livro "Para além do capital: rumo a uma teoria da transição", István Mészáros afirma que o capital se articula num tripé formado pelo capital, trabalho e Estado e constitui um processo metabólico de controle de todas as esferas da sociabilidade humana. O capitalismo pode ser derrubado politicamente, mas as lógicas do capital, do Estado, e da divisão do trabalho podem permanecer e, dessa forma, restaurar o capitalismo. Esta incompreensão foi, para ele, a questão fundamental do fracasso das sociedades pós-capitalistas (o socialismo burocrático da URSS e das finadas repúblicas do Leste Europeu) que superaram a dominação política capitalista e formas de propriedade, mas não o controle "sociometabólico" do capital. No mesmo livro, ele menciona a crise ambiental e a luta das mulheres por uma "igualdade substantiva" como indícios de que o sociometabolismo do capital, em sua forma altamente desenvolvida, já se coloca em antagonismo à própria produção social da vida. Nesse sentido, da mesma forma que Malcolm X afirma que "não há capitalismo sem racismo", e as mulheres dizem que não existe possibilidade da construção do socialismo, sem a destruição do machismo, podemos afirmar que não existe possibilidade de superação das várias crises do capital, entre elas a ambiental, mantendo-se intacto o sociometabolismo do capital.
Novo paradigma anticapitalista. Segundo Michael Löwy, em "Ecossocialismo e planejamento democrático", o "Ecossocialismo é a tentativa de fornecer uma alternativa civilizacional radical ao que Marx chamou o 'processo destrutivo' do capitalismo". Neste texto ele cita James O'Connor, em "Natural Causes. Essays in Ecological Marxism":
"o objetivo do socialismo ecológico é uma nova sociedade baseada na racionalidade ecológica, no controle democrático, na igualdade social e no predomínio do valor de uso sobre o valor de troca".
Löwy acrescenta que:
"estes valores requerem: (a) propriedade coletiva dos meios de produção ('coletiva' significa aqui propriedade pública, cooperativa ou comunitária); (b) planejamento democrático, que torna possível a sociedade definir os seus objetivos de investimento e produção; e (c) uma nova estrutura tecnológica das forças produtivas. Por outras palavras, uma transformação revolucionária, econômica e social".
A construção desta nova sociedade, possível e cada vez mais necessária, está na ordem do dia e cabe aos socialistas incorporarem – nas formulações, discursos e ações – o combate à coisificação do capital, que transformou o mundo em um grande supermercado global. Porém, entre a esquerda, também é necessária a crítica tanto à "ideologia produtivista do progresso", quanto à justificativa da depredação "socialista" da natureza, baseada na afirmação de que os fins justificam os meios. Para os ecossocialistas, além da denúncia, propaganda e agitação, fica a tarefa de começar a colocar esta discussão nas agendas de sindicatos, associações, entidades estudantis e organizações dos movimentos sociais, e ajudar a formular nas pautas reivindicatórias, programas e campanhas propostas que indiquem um processo de transição para esta nova sociedade.
Novas pautas, novas propostas. Como se trata de atacar o capitalismo por outra vertente que não seja a das lutas econômicas e do marco do trabalho, antes de mais nada cabe a nós militantes de partido, organizações e movimentos sociais nos engajarmos em um profundo processo de formação, sem perder de vista nossa atuação prática no dia-a-dia. A formulação teórica e a discussão aprofundada de alternativas que não nos conduzam novamente aos mesmos paradigmas que criaram as crises que enfrentamos, devem estar sempre presentes nas composições de mesas de debate e seminários. Nossa relação com a academia também deve ser dirigida para que possamos, o mais rápido possível, preencher as lacunas teóricas. Mas não começamos do zero. Temos acúmulo suficiente para associarmos as políticas e as práticas neoliberais aos principais problemas enfrentados pela humanidade e pelo planeta.
Denunciamos a fome endêmica no mundo que atinge quase 1 bilhão de pessoas; responsabilizamos a transformação dos alimentos em commodities sujeitas à especulação; e defendemos a recuperação da soberania alimentar pelas nações e suas populações. Denunciamos a escassez da água – com mais de 1,3 bilhão de pessoas sem acesso à água tratada – que se tornará maior com as mudanças climáticas; responsabilizamos os meios de produção capitalista, industrias ou agronegócio, que desperdiçam e sujam a água; e defendemos que a água é um bem universal e público, de uso social e acesso garantido a todos os habitantes do planeta. Denunciamos o saque e esgotamento dos recursos naturais, a depredação dos ecossistemas e da biodiversidade; responsabilizamos o capital, que no afã de manter seu nível de lucratividade, cria condições de inviabilidade para a vida na Terra; e defendemos um desenvolvimento ecossocialista sustentável.
Denunciamos as mudanças climáticas que nestes próximos 50 anos afetarão a vida, principalmente, dos países em desenvolvimento e das populações pobres dos países desenvolvidos; responsabilizamos a sanha do agronegócio desmatando as florestas tropicais em busca de novas áreas de cultivo e criação, a farra de consumo de combustíveis fósseis, seja na produção, como na civilização do carro; e defendemos o fim do desmatamento na Amazônia e outras florestas tropicais, a redução imediata da emissão de CO2 através de acordos multilaterais mais rígidos e sérios do que o fiasco de Kyoto, dentro da lógica de "responsabilidades comuns, porém diferenciadas", o questionamento do consumismo e da prevalência do individual (carro) sobre o coletivo (meios de transporte de massa), e o incentivo ao desenvolvimento de matrizes energéticas alternativas e limpas.