Como era de se esperar, a mídia e os candidatos conservadores vêm repetindo, nesta campanha, o discurso da desordem urbana, colocando como principais responsáveis os setores mais pobres da população. São eles que atravancam as calçadas com suas bancas de camelô, que atrapalham o trânsito com as vans piratas, que ocupam irregularmente as encostas, colocando em risco o meio ambiente. São eles que perambulam e cheiram cola nas esquinas, que se organizam em comandos levando a violência e o terror a toda a cidade. São os mesmos que jogam lixo e esgoto nos rios e lagoas e destroem a floresta. Este é o discurso oficial, ideologia barata que vêm sendo enfiada goela abaixo pelos meios de comunicação, em especial as Organizações Globo.
Desta forma, já era esperado – como, de fato, vem acontecendo – que nas entrevistas e debates, esta tal desordem fosse colocada no centro da discussão e brandida contra os candidatos da esquerda. Nas entrevistas, seja de forma mais simpática, ou procurando encostar os candidatos nas cordas, a preocupação dos apresentadores é, a partir da associação entre "desordem urbana" e ocupações nas encostas, questionar qual as propostas dos candidatos em relação à remoção de favelas.
Nos termos em que este ponto está sendo colocado, o time da esquerda vai sempre jogar no campo adversário e, conseqüentemente, na defensiva. Discutir problemas e soluções para questões originadas de uma avaliação com qual não concordamos, é cair na armadilha de quem insiste em vender, e dar ares de normalidade, a uma concepção de cidade restritiva, elitista e autoritária.
A verdadeira discussão é sobre quem é o responsável pelo caos urbano, ou melhor, sobre quem desorganiza a cidade. Nestas eleições, além de colocarmos na roda nossas propostas, é fundamental que a esquerda traga essa discussão para o centro do palco, apontando o real culpado. Ao invés de aceitarmos esta sabatina cínica e nos submetermos ao papel de administrador das mazelas do neoliberalismo e de despachante dos interesses das grandes empresas, temos que usar o espaço eleitoral para fazer alguns questionamentos incômodos aos conservadores e desconstruir falsas verdades.
Por que o Rio de Janeiro e sua população devem viver em função da ditadura do automóvel? Por que o consumismo e o desperdício devem ser tão cultuados e incentivados na nossa cidade? Por que o transporte coletivo da cidade deve ser tratado como uma ação entre amigos mafiosos, que impõem seus interesses em detrimento das necessidades da maioria da população? Por que a geografia e os pólos econômicos e produtivos da cidade podem ser redesenhados à vontade pela especulação imobiliária? Por que mansões e condomínios construídos nas encostas dos morros "preservam a natureza", enquanto as comunidades são uma ameaça ambiental? Por que serviços regulares de fornecimento de água e saneamento básico tornam-se mais raros, à medida que vão se distanciando das áreas nobres e a cor da pele da população vai enegrecendo? Por que superfaturar obras desnecessárias e deixar Saúde e Educação à míngua?
Por que manter enormes contingentes em situação de desemprego estrutural, tendo que "correr atrás" para sobreviver, enquanto milhões são destinados a projetos de desenvolvimento insustentável que ajudam a destruir ainda mais o meio ambiente e a saúde das populações que vivem no seu em torno? Por que reclamar do aumento da violência gerado por estas situações, quando a cidade está organizada para perpetuar a miséria, a fome e a exclusão? Como podemos falar em ordem urbana, se ela traz o caos e barbárie para a maioria de sua população, segregando-a e tornando-a cada vez mais miserável e despossuída do acesso aos serviços mais básicos? Por que continua a destruição das áreas verdes da cidade, assim como a impermeabilização do solo e a emissão dos gases formadores do efeito estufa, como se as mudanças climáticas não fossem atingir a nossa cidade?
Quem desorganiza a cidade é o neoliberalismo, dissociando a cidade de seu espaço físico, do meio ambiente onde ela está colocada e, principalmente, da maioria de seus habitantes. As favelas, as vans, as ocupações urbanas, o comércio informal dos camelôs, os gatos de água e luz, não devem ser vistos como instrumentos da desordem urbana, mas como formas de resistência ao caos e barbárie neoliberal. São soluções limitadas e, por isso, imperfeitas, mas que apontam para a existência de uma outra cidade, que resiste ao avanço da criminalização e da responsabilização dos pobres e dos movimentos sociais por tudo que existe de negativo na cidade, mesmo que não lhes caiba nenhuma responsabilidade. Os futuros governos da esquerda devem estabelecer novas relações com esta população, dando-lhe voz e poder, e sendo parceiro em uma grande reforma urbana ecológica e socialista que o Rio tanto precisa.
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